No fim de 2023, crise hídrica obrigou hidrovia a reduzir fluxo de navios de 38 para 22 ao dia


Navios atravessam o Canal do Panamá: a água do lago flui através das eclusas do canal que funcionam como escadas, puxando os navios através do canal — Foto: Federico Rios/The New York Times

Ricaurte Vásquez Morales é um homem obcecado por água. Um aplicativo em seu celular exibe o nível flutuante do Lago Gatún, o reservatório artificial que é a peça central do sistema do Canal do Panamá. Ele verifica constantemente, da mesma forma que um viciado em apostas acompanha os placares de futebol. E mantém um olhar atento sobre o clima.

— Eu adoro um dia chuvoso — disse ele.

Vásquez Morales é o administrador do Canal do Panamá, que é tanto o coração econômico de sua nação no istmo quanto uma artéria central para o comércio global. Mais da metade da carga em contêineres que se desloca entre a Ásia e a Costa Leste dos Estados Unidos passa pelo atalho escavado na selva da América Central — a ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico.

No ano passado, uma seca fez o lago atingir níveis críticos, levando as autoridades do canal a limitar o tráfego. No pior momento, em dezembro, apenas 22 navios por dia puderam atravessar o canal, em comparação aos habituais 36 a 38. Mais de 160 navios ficaram ''estacionados'' em ambas as extremidades.

As chuvas que começaram em maio permitiram a suspensão da maioria das restrições, e, nas últimas semanas, 35 navios por dia, em média, têm feito a travessia.

Mas as autoridades do canal sabem que isso é apenas um alívio temporário em uma nova era influenciada pelas mudanças climáticas e por períodos frequentes de El Niño, quando as temperaturas do oceano aumentam e as chuvas diminuem. Elas estão obcecadas com a expansão do armazenamento de água.

Uma barragem planejada para o Río Indio, um rio sinuoso a sudoeste do Lago Gatún, criaria outro reservatório que poderia ser usado para reabastecer o canal durante as secas. No entanto, o projeto também inundaria as casas de 2.000 pessoas predominantemente pobres que precisariam ser realocadas e correriam o risco de perder seus meios de subsistência.

O Canal do Panamá é um componente de um sistema de comércio global que luta para se ajustar a uma complexa mistura de mudanças ambientais, geopolíticas e econômicas.

Há três anos, um enorme navio porta-contêineres ficou encalhado no Canal de Suez, no Egito, fechando essa via navegável para os navios que transitavam entre a Europa e a Ásia. Nos últimos meses, navios a caminho do canal foram ameaçados por ataques violentos de rebeldes houthis no Iêmen, levando-os a viajar pelo caminho mais longo ao redor da África, impondo atrasos e elevando as tarifas de transporte.

Greves ou ameaças de paralisações de trabalho têm perturbado portos da Alemanha ao Canadá e à Costa Leste dos Estados Unidos.

Visitantes nas eclusas de Miraflores no Canal do Panamá: Depois de uma seca que prejudicou a navegação, os responsáveis pela hidrovia panamenha estão ansiosos por expandir o armazenamento de água — Foto: Federico Rios/The New York Times

O problema que paira sobre o Canal do Panamá é mais existencial e não pode ser resolvido com um acordo de cessar-fogo ou um novo contrato trabalhista.

— Os últimos 20 anos foram totalmente diferentes dos 80 anos anteriores — ressaltou Victor Vial, diretor financeiro do canal. — Esqueça 2000 e antes, porque as mudanças climáticas têm, em crescendo, causado um impacto muito diferente..

Sistema de Drenagem Monumental

Do ar, o Canal do Panamá revela-se como um sistema de drenagem monumental movido inteiramente por gravidade. O Lago Gatún ocupa a seção intermediária, uma vasta extensão de água brilhante que se escoa em direção aos horizontes, pontilhada por ilhas cobertas de florestas.

Ricaurte Vásquez Morales, administrador do Canal do Panamá, está constantemente verificando os níveis de água: "Adoro um dia de chuva" — Foto: Federico Rios/The New York Times

A água do lago flui através de uma série de eclusas que funcionam como escadas. As eclusas são necessárias para elevar os navios da costa até o interior do país e, em seguida, descer gradualmente até a costa oposta. Em uma peculiaridade da geografia, a Costa do Pacífico é, na verdade, mais alta do que a do Atlântico, necessitando algum tipo de escada.

Os navios entram pelas entradas nas costas Atlântica e Pacífica, depois passam por pares de portões flutuantes que impedem a água de fluir ladeira abaixo, fazendo-a se acumular. Uma vez que a água sobe o suficiente, elevando os navios para o próximo estágio, os portões são abertos e as embarcações podem continuar. Depois de cruzarem o lago, os navios passam por mais comportas, desta vez voltando ao nível do mar. A travessia tem 50 milhas de extensão e geralmente leva 12 horas.

Volumes impressionantes de água do Lago Gatún são necessários para que o sistema funcione. A passagem de um único navio precisa de mais de 50 milhões de galões de água. Todos os dias, o canal usa 2,5 vezes a quantidade de água consumida pelos 8 milhões de habitantes da cidade de Nova York.

Em um ano normal, cerca de 13.000 navios completam essa jornada. Desde outubro passado, o tráfego tem operado a um ritmo anual de apenas 10.000 embarcações.

Durante grande parte do ano passado, devido aos níveis mais baixos de água, os maiores navios porta-contêineres foram obrigados a reduzir sua carga descarregando caixas nos portos no início de sua jornada pelo canal e transportando-as por terra de caminhão ou ferrovia.

O canal puxa água de tanques de armazenamento construídos ao lado das eclusas, reduzindo a quantidade de água drenada do Lago Gatún para a passagem de cada navio.

Containers empilhados numa área de armazenamento num porto perto da Cidade do Panamá — Foto: Federico Rios/The New York Times

Mas isso tende a aumentar a salinidade do lago, que também é a fonte de água potável para mais da metade dos 4,4 milhões de habitantes do Panamá.

As autoridades do canal têm explorado maneiras de dessalinizar partes do lago. Elas também estão testando formas de semear nuvens para aumentar a precipitação.

Mas a solução central é criar uma segunda fonte de água para o canal com a barragem proposta no Río Indio.

A autoridade do canal havia contemplado essa opção por décadas, especialmente à medida que a população da área metropolitana da Cidade do Panamá aumentava para 2,5 milhões, aumentando a demanda por água potável. Mas uma antiga lei tornava o rio inacessível à bacia hidrográfica controlada pelo canal.

No mês passado, a Suprema Corte do Panamá derrubou essa limitação. A autoridade do canal agora está avançando com o planejamento do projeto, que deve levar seis anos e custar US$ 1,6 bilhão.

— Felizmente, agora temos um caminho a seguir. Isso deve resolver os próximos 50 anos — disse Vial.

Agora, as autoridades do canal estão focadas em obter o consentimento das pessoas que estão efetivamente no caminho. Estão explorando lugares para realocar as aldeias, abrindo escritórios de contato nas comunidades afetadas e expandindo esforços para cultivar culturas comerciais como o café para substituir os meios de subsistência que serão desarraigados.

Também estão ajudando as famílias a garantir a titularidade legal das terras que cultivam há anos, preparando-as para receber indenizações.

— No fim do dia, elas estarão em uma situação melhor do que estão agora — afirmou Vial.

‘Não ao reservatório’

Olegario Hernández é profundamente cético em relação a essa conversa. Nos últimos 64 anos, ele viveu e cultivou na vila de Limón, um aglomerado de casas esculpidas na selva da província de Colón, perto de uma curva no rio de cor de café que está destinado à barragem.

A partir da esquerda, Olegario Hernandez e o seu vizinho Adalberto Acevedo, que estão para ser realojados, na aldeia de Limón, Panamá — Foto: Federico Rios/The New York Times

Um cartaz pintado à mão afixado em sua cerca frontal declara um sentimento popular local: “Não ao reservatório.”

A casa de Hernández é construída de tábuas rústicas e chapas de alumínio ondulado. Ele não tem eletricidade nem encanamento interno. No entanto, enquanto se senta à sombra de seu pátio em uma tarde sufocante, ele se satisfaz com o que construiu.

Por décadas, ele cultivou milho, arroz, mandioca e banana-da-terra — o suficiente para alimentar seus seis filhos. Aos 86 anos, ele já não pode mais trabalhar na terra, e, em vez disso, arrenda-a para pecuaristas.

Ele não tem apetite para recomeçar, especialmente não para facilitar a passagem de navios que transportam televisores de fábricas chinesas para casas com ar-condicionado nos subúrbios de Nova York:

— Eles querem nos realocar, mas não pensamos assim. Não há lugar melhor.

Do outro lado da estrada em frente à sua casa, a escola está em funcionamento. Os professores se perguntam o que acontecerá com seus alunos depois que a barragem for construída. Alguns caminham por até três ou quatro horas para chegar à escola.

Eles guardam seus sapatos de couro preto — parte de seu uniforme obrigatório — em casas na aldeia, calçando chinelos para atravessar o rio lamacento em direção às suas casas do outro lado. Muitos dependem da cozinha da escola para suas únicas refeições confiáveis do dia.

— Eles vão perder tudo — disse a diretora da escola, Ophelia Grenald, de 45 anos. — Eles não serão capazes de receber educação.

Alunos durante as aulas na aldeia de Limon: professores receiam que a realocação causada pela barragem do Rio Indio possa mudar a vida das crianças, algumas das quais dependem da cozinha da escola para comer — Foto: Federico Rios/The New York Times

O escritório de contato do canal é tão distante da capital que o homem atrás da mesa, Esteban Sánchez, tem poucas informações.

As pessoas chegam falando ter ouvido sobre a barragem no rádio. Quando será construída? Para onde as pessoas serão transferidas? Alguns já estão vendendo suas vacas em antecipação. Muitos querem se candidatar a empregos na construção.

Sánchez não os liberta da incerteza:

— Respondo que estamos apenas na fase de estudos.

Um problema permanente

Dentro dos escritórios fortificados da autoridade do canal na Cidade do Panamá, as pessoas encarregadas estão procedendo com a suposição de que a barragem vai em frente.

— Isso lhe dá um elemento a mais em sua caixa de ferramentas — disse Vásquez Morales, o administrador do canal.

Ele verifica o aplicativo em seu celular. O Lago Gatún está a 83,5 pés, a profundidade ideal. Ele olha pela janela. Nuvens ameaçadoras pairam baixas sobre a terra, um presságio promissor.

Alguns temem que o fim da mentalidade de cerco — o fim da seca — possa desacelerar o ímpeto para expandir o abastecimento de água.

—A chuva não apenas lava as ruas, lava nossas mentes e pensamos que o problema acabou— disse Carlos Urriola, presidente da SSA International, que opera terminais de embarque em todo o mundo, inclusive no Canal do Panamá. — O problema da água é permanente.


Fonte: O GLOBO