Vilhena, Rondônia - A chegada de uma facção rival a um conjunto habitacional na periferia de Fortaleza alterou a vida de uma quadra inteira. Em janeiro, Ana* recebeu um vídeo em que criminosos ameaçavam de morte seu filho mais velho, sob o som do piseiro "O menino de vó vai deixar vovó". No mês seguinte, Jaqueline* se deparou com três homens encapuzados e armados na porta de casa, que lhe deram 24 horas para ir embora. Com medo, tomaram o mesmo rumo de outras cerca de 50 famílias, nas contas delas: abandonar tudo do dia para a noite, muitas com a roupa do corpo.
Tomado por sete facções que disputam o território pelo tráfico de drogas, o Ceará produziu um fenômeno urbano que desafia o Estado, o dos deslocados forçados. Moradoras de áreas controladas por organizações criminosas, famílias inteiras são expulsas, ou "espirradas", na linguagem popular, pelo simples fato de terem alguma relação com um bando adversário — seja de amizade ou parentesco, ou por serem oriundas de uma área de inimigos. Os criminosos não se apossam somente de casas em comunidades periféricas, mas também de comércios, fazendas e blocos inteiros de conjuntos habitacionais do programa federal Minha Casa, Minha Vida.
O GLOBO ouviu integrantes do Ministério Público, das polícias Civil e Militar, pesquisadores do tema e deslocados urbanos. É consenso entre eles que o problema está disseminado, e tem se agravado com o acirramento da guerra entre esses grupos.
A socióloga Suiany Silva de Moraes, membro do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, explica que há alguns tipos de deslocamentos urbanos, como os afetados pelos eventos climáticos, caso do Rio Grande do Sul. Ou os prejudicados pelas intervenções urbanas, como na Copa do Mundo, em que comunidades inteiras foram retiradas para a passagem do Veículo Leve sobre Trilhos no próprio Ceará. Em seu doutorado, ela pesquisa o deslocamento motivado pelo conflito armado, diretamente relacionado à governança criminal, quando facções criminosas comandam, muitas vezes mais que o Estado.
— É um fenômeno que a gente tem observado principalmente em Fortaleza e na região metropolitana, mas não só. O morador é obrigado a se deslocar mesmo sem ter nenhum envolvimento [com o crime]. Se alguém é contemplado com um apartamento do Minha Casa Minha Vida num bairro controlado por um grupo diferente do seu de origem, ocorre de sequer conseguir fazer essa mudança. No momento da chegada, já recebe a comunicação de que não pode ficar — contou Suiany.
Ana conseguiu o sonho da casa própria há cerca de seis anos. Contemplada pelo programa Minha Casa, Minha Vida, foi viver com o filho num apartamento de dois quartos no residencial Alameda das Palmeiras, no bairro Pedras. Até junho passado, o condomínio era relativamente tranquilo, tinha uma vizinhança "animada". A tomada do bairro por uma facção rival mudou o cenário.
— Virou uma coisa sem lei. Eles passaram a matar, tomar a casa dos outros. Passavam de carro e jogavam bomba. Ninguém mais dormia direito. Eu olhava pela janela e só via caminhão de mudança, as ruas vazias. Depois de receber o vídeo ameaçando meu filho, que jogava futebol com os meninos da facção, mas não tinha relação, me apressei — disse ela, agora de favor na casa de uma amiga e ainda com a dívida do apartamento com o banco, mesmo com o imóvel fechado. — Se eu ficasse ali…. Teria morrido, com certeza.
Também moradora do residencial Alameda das Palmeiras, Jaqueline não esperou nem o prazo de 24 horas para deixar sua casa. Saiu imediatamente com o filho. O único bem que levou foi o celular, guardado no bolso. Agora moram de favor na casa de conhecidos, está em busca de emprego e teve de transferir o menino de escola.
— Na hora, me desesperei, só queria saber das nossas vidas. Não me liguei de fazer uma mala, pegar fotos. Eu tinha uma vida. Da água para o vinho, por conta de amizade, a gente tem de pagar — afirmou.
Uma portaria do Ministério das Cidades passou a permitir a rescisão de contratos de unidades habitacionais do programa Minha Casa, Minha Vida pelo impedimento da ocupação ou retirada do imóvel por invasão ou ameaça. O problema é tão escancarado que virou argumento da oposição na última campanha política.
Diante da incapacidade de encontrar uma solução, o governo do Ceará criou um batalhão especial da PM para reduzir danos, o Comando de Prevenção e Apoio às Comunidades (Copac), em junho de 2022. O Copac faz um trabalho preventivo de intervenção territorial, para tentar impedir crimes do tipo. Quando as expulsões acontecem, resta aos agentes tentar proteger as famílias deslocadas à força. Não são raros os casos em que elas saem escoltadas dos residenciais pela própria PM.
O problema dos deslocados urbanos não é exclusivo do Ceará. O fenômeno ocorre em estados como Bahia, Rio Grande do Sul, Alagoas, Acre e Rondônia. Não há estatísticas oficiais. Um policial do Ceará calcula que, nesses dois anos do Copac, pelo menos 500 famílias foram expulsas no estado.
— É um problema que envergonha os governos, eles querem jogar para debaixo do tapete. Mas é grave. Chegam ao ponto de o crime tomar um mercantil, uma fazenda de uma pessoa. Casas nem se fala. Teve um bairro em que eles expulsaram todos os moradores, mais de 100 famílias. Recebeu o ultimato do crime e não cumpriu, é certeza de morte, não tem perdão. Por isso, muitos vão morar debaixo da ponte — afirmou.
Policia Militar reforça patrulhamento na comunidade do Uga-uga, em 2021, após facção criminosa expulsar 50 famílias — Foto: Mateus Dantas
As unidades habitacionais tomadas pelo crime têm três destinações, segundo o policial: ocupação de membros das facções ou moradores aliados a eles; exploração econômica, com a locação e a reversão da renda para o crime; uso nas ações estratégicas, como esconderijo de armas e drogas ou até mesmo ponto de campana.
O delegado Alisson Gomes, titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) do Ceará, afirma que a Polícia Civil fez operações em pelo menos nove condomínios do tipo, inclusive com prisões de suspeitos.
— Nosso monitoramento é permanente, independente da sigla ou da origem da facção, nós fazemos o monitoramento e buscamos tirar de circulação os indivíduos pensantes desses grupos criminosos — afirmou Gomes.
Tão desigual quanto outras capitais do Brasil, Fortaleza tem mais de um milhão de pessoas vivendo em assentamentos precários e mais de 230 mil famílias inscritas na Secretaria de Habitação (Habitafor), potenciais beneficiárias de programas habitacionais, segundo o pesquisador Luiz Fábio Paiva, do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará. Para muitos, o programa federal Minha Casa, Minha Vida é a única oportunidade de acesso a uma moradia formal.
— Os residenciais do programa ficam em territórios distantes, com grande aglomeração populacional. São condomínios em massa, criados em situações na qual você não tem grandes laços sociais entre as pessoas. Não tem comércio nem infraestrutura do Estado. São lugares ideais para grupos mafiosos que querem exercer o controle — ponderou Paiva.
Também para atender os deslocados urbanos, a Universidade de Fortaleza (Unifor) criou o Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana. O atendimento multidisciplinar garante às famílias desde pedidos de alugueis sociais e reparação de danos ao município de Fortaleza até assistências psicológica e social. A professora Juliana Mamede, coordenadora do núcleo, explica que muitas vítimas não ficam só tolhidos do direito de moradia, mas também perdem trabalho, acesso à saúde e educação, por não mais poderem transitar em seus bairros.
— As narrativas, quando chegam para a gente, chegam muito picotadas. Eles passam por um trauma tão grande que não conseguem estabelecer linearidade na conversa. Existe o medo paralisante de ser identificado e ser visto. Essas vítimas não se sentem amparadas, não encontram tutela do Estado — disse.
Ao GLOBO, o secretário da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará, Roberto Sá, afirmou que não há "dominação territorial" nas periferias e que a polícia "entra em todas as áreas que tiver que entrar". Segundo ele, as facções querem expandir os pontos de venda para ter exclusividade do comércio da droga, "e acaba entrando em conflito com o vizinho". Sá minimizou o fenômeno dos deslocados urbanos no Ceará.
— A gente tem obtido relatos, muitas vezes em OFF. A gente pede muito para que as pessoas façam registro de ocorrência, para poder investigar e chegar aos autores. Infelizmente, esses conjuntos acomodam muita gente. E algumas, infelizmente, às vezes têm membros da família com contato com um grupo. E essa proximidade acaba levando a esse episódio de uma ter uma expulsão ou outra — justificou.
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das vítimas
Fonte: O GLOBO
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