A lei da chibata jamais constituiu um equívoco; trata-se de crime pensado pelo qual são responsáveis a Marinha como coletivo e os demais poderes que o toleraram desde sempre

Porto Velho, RO - “João Cândido deve ser promovido a símbolo da dignidade do soldado brasileiro. Sua história deve ser conhecida nas fileiras. Sua imagem deve ser exibida com destaque nos estabelecimentos militares de terra, mar e ar” – Manuel Domingos Neto. O que fazer com o miliar.

O oficial que se senta hoje na cadeira de comandante da Marinha sai de seus cuidados e de suas atribuições para imiscuir-se no que não lhe cabe, ao dar palpites injuriosos sobre projeto de lei já aprovado no Senado e presentemente em tramitação na Câmara dos Deputados.

Da autoria do deputado Lindbergh Farias, a proposta, apoiada pelo Ministério Público Federal e combatida em termos inaceitáveis pela caserna, manda inscrever “no Livro dos Heróis da Pátria” o marinheiro João Cândido, negro, filho de ex-escravos, líder vitorioso da Revolta da Chibata, em 1910, pois, em plena República, 38 anos passados da abolição da escravatura, o fiador da ordem e da disciplina na Marinha de guerra brasileira era ainda o castigo físico, brutal, ignominioso, covarde e racista: a tortura, a chibatada, a palmatória, a injúria, o aviltamento imposto aos praças, quase todos negros, pelos oficiais, sempre brancos e sempre filhos da classe dominante.

A injúria é um padrão ideológico.

Enquanto a chibata que aviltava o praça é, ainda hoje, um calo na história da corporação, o almirante Saldanha da Gama, conhecido como “terrível chibateiro”, é venerado, encabeçando uma lista de torturadores fardados. Segundo Gastão Peralva, o almirante Vandenkolk não se pejava de afirmar que mais valia a chibatada, como castigo ao réu confesso, do que “os maçantes e delongados conselhos de guerra”.

Tobias Monteiro (Funcionários e doutores) registra que fora da medicina, do direito ou da engenharia, “eram os rebentos das famílias ricas encaminhados para o oficialato da Marinha”, enquanto o racismo e a violência física, desumanizante, eram a lógica da disciplina militar. Um racismo que não pode escamotear sua essência classista.

Sem alento para oferecer conselhos de leitura ao atual chefe dos marinheiros, sugiro ao leitor as páginas de Adolfo Caminha (O bom crioulo) descrevendo o suplício de uma sessão de chibatadas. O comandante do navio palco da selvageria é o almirante Saldanha da Gama, também descrito por Gilberto Freyre como “aristocrata” e “fidalgo”.

Refiro-me seguidamente ao almirante Saldanha da Gama porque o ódio ao marinheiro negro e libertador se cola com a reverência da caserna, ainda hoje, ao almirante chicoteador. Enquanto Saldanha da Gama batiza o navio-escola da Marinha – donde se conclui que a corporação abona seus crimes — o marinheiro negro que livrou a Marinha desse opróbrio– é perseguido, mesmo passados 55 anos de sua morte.

Contra essa miséria, em simbiose com a qual nascera a Marinha e com a qual a corporação mantinha sua disciplina de aço, dependente da destruição do caráter de seus marujos, levantou-se o Almirante Negro, e no campo de batalha em que se transformaria a Bahia de Guanabara, derrotou os fidalgos seus algozes, oficiais da classe dominante.

A revolta dos marinheiros, contra os castigos e os baixos salários, a escassa alimentação, o tempo de serviço exagerado, instalou-se no dia 22 de setembro de 1910, no encouraçado Minas Gerais, liderada por João Cândido. O que pleiteavam esses brasileiros desamparados, tratados pelos seus superiores como rebotalho social? Apenas o direito de terem sua condição humana respeitada. Está no manifesto lançado à nação:

“(…) Por isso pedimos a V. Exa. [dirigem-se ao presidente da República] abolir o castigo de chibata e os demais bárbaros castigos pelo direito da nossa liberdade, a fim de que a Marinha Brasileira seja uma Armada de cidadãos, e não uma fazenda de escravos, que só tem dos seus senhores o direito de serem chicoteados.”

O motim, que mobilizou 2 mil homens, duraria quatro dias, ao cabo dos quais o governo entregou os pontos. Presidente da República era o marechal Hermes da Fonseca que, acovardado (a cidade estava sob a mira dos revoltados) e pressionado pelo Congresso, negociou o cessar-fogo, e na sequência, obra parlamentar, a Anistia aos revoltosos (texto redigido por Rui Barbosa), aos quais foram dadas todas as garantias devidas, para nenhuma ser cumprida.

À prática impune e centenária do crime da tortura, a Marinha brasileira de Tamandaré ajunta a felonia, marca de ferro em brasa da qual jamais se limpará. Após entregarem as belonaves, os marinheiros foram presos, torturados e muitos assassinados. Os sobreviventes, perseguidos por toda a vida. Todos os anistiados foram expulsos da Marinha!

João Cândido permaneceu detido, a primeira vez, por 18 meses em uma prisão subterrânea, a seguir internado em hospital de alienados, depois solto e novamente preso (numa cela com 30 detidos, dos quais só ele e mais um companheiro de cela sobreviveram). O herói, como quase todos os revoltosos, foi condenado ao desamparo no qual viveu pelo resto da vida, no Rio de Janeiro, vendendo peixe no mercado, até 1969, quando morre, na miséria, aos 89 anos.

Assim age um Estado sem honra. E agora, passados 114 anos, a Marinha, com o significativo silêncio do ministro da Defesa, investe desabridamente contra a honra do Almirante Negro e açoita a memória dos revoltosos.

Mas ainda não seria tudo. Falta falar nos massacres da ilha das cobras e do Satélite.

A anistia já havia sido defraudada com as prisões e as expulsões dos praças que se haviam amotinado.

Os marinheiros que a repressão pôde identificar foram presos e removidos à Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara, que servia como se base naval fôra. Lá, grande número deles foi executado sumariamente.

O Satélite era um cargueiro mercante, no qual, às vésperas do Natal, foi embarcado um número ainda incerto de brasileiros desagradáveis ao governo do Marechal Hermes. Boa oportunidade para as fileiras também se verem livres dos militares amotinados, e o evento foi exclusivamente de ordem militar, sem quaisquer considerações com a organização política, ou econômica, sem qualquer nível de preocupação com o processo social.

Deve-se ao jornalista Edmar Moal a recuperação da verdade em torno daquele que certamente foi o primeiro levante de subalternos nas Forças Armadas brasileiras A história deve-lhe uma pesquisa preciosa. Refiro-me ao seu livro A revolta da chibata, de 1979. Assim ele descreve a sinistra viagem do Satélite:

“É difícil encontrar uma palavra que defina a viagem do cargueiro do Loide Brasileiro, que transportou os rebeldes do “Batalhão Naval” e dos vasos-de-guerra, fuzilando-os sumariamente em alto mar, a partir da saída do paquete da Baia de Guanabara, na noite do Natal de 1910. Outros tombaram assassinados nas selvas do Amazonas”.

O comandante de hoje diz que a insurgência é um opróbio, e não põe na mesa o horror da tortura, dos assassinatos, como se a revolta fosse fruto do nada, quando ela é sempre uma construção do opressor. Ofende os heróis chamando-os de “abjetos marinheiros”, quando o levante já é um velho de mais de cem anos.

Como explicar o ódio senão como uma paranoia construída por séculos de lavagem cerebral? O comandante de hoje acusa nossos heróis de 1910 de haverem desrespeitado a hierarquia e a disciplina militar, mas convenientemente silencia diante da Revolta da Marinha, de 1893, quando oficiais e comandantes brancos e filhos da classe dominante, chefiados por Saldanha da Gama, pretendiam depor o presidente da República.

Silencia diante da felonia dos ministros da Marinha, ora na intentona de 1955, ora em 1961, e na traição à democracia em 1964. E, ainda há pouco, no apoio de seu ministro à intentona de 8 de Janeiro do ano passado. E silencia diante dos crimes contra a democracia cometidos durante mais de um século. Porque seus atores eram, antes de tudo, oficiais superiores. E quase todos brancos.

A lei da chibata e dos castigos jamais constituiu um equívoco; trata-se de crime pensado pelo qual são responsáveis a Marinha como coletivo, e os demais poderes da República que o toleraram desde sempre.

A Marinha é, pois, hoje, ideologicamente a mesma, imutável no tempo, blindada contra o processo histórico. Conservadora e racista.

O almirante comandante de hoje, ademais de haver perdido excelente oportunidade de ficar calado, excedeu-se, ofendendo a honra de João Candido, um herói sem medalhas, mas, no contrapelo dos heróis oficiais, vencedor no campo da batalha, derrotando seus comandantes, e campeão no apreço popular.

Ao fim, pobre e negro, paupérrimo, perseguido por toda a vida pelo Estado de classe, ademais de incuravelmente racista, João Cândido foi eleito herói (herói do povo), pelo que talvez se possa chamar de consciência nacional.

O comandante da Marinha, porém, qualifica os revoltosos anistiados como “abjetos marinheiros” quando deles recolhemos os ensinamentos da dignidade perdidos pela força naval. Ofende a Revolta da Chibata como “deplorável página da história nacional”. Ora, dos marinheiros de 1910 somos todos devedores, pois lhes devemos nos havermos livrado da escravidão mantida na Marinha por seus comandantes, política e ideologicamente sempre os mesmos.

João Cândido não pode ser chamado de intruso ou “insurgente” (ou o é porque era negro?), como dita o comandante, mas um herói do povo. Ademais, descabe às chamadas forças dar palpite sobre decisões políticas do poder Legislativo. Fosse outra a nossa República, e outra a correlação de forças, o ministro da Defesa já teria sido chamado, pelo presidente da República, para dar satisfações sobre a indisciplina do oficial que escolheu para chefiar a Marinha.

Lamentavelmente, esse quadro infeliz é denotativo da correlação de forças que controla/sustenta nosso governo. A história ensina que se o recuo político pode ser uma tática, bem sucedida quando ditada pela conjuntura, jamais poderá ser receitada como estratégia. E nenhuma estratégia será capaz de enfrentar as dificuldades de hoje (anunciantes das dificuldades futuras) se o ponto de partida não for a organização social e o grande debate político.

Confesso minha dificuldade na tentativa de compreender por que um governo do PT alimenta tanta resistência à organização e ao diálogo popular.

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Honrando Joào Cândido – Em 2008 o Brasil prestou merecida mas retardada homenagem a João Cândido, quando o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, inaugurou uma estátua do Almirante Negro, no Rio, de Janeiro, na Pça XV. A crônica registra a resistência da caserna.

Nísia Trindade, menos Faria Lima – Ausentes das cartas autoritárias, as vinculações de recursos da Saúde e da Educação são uma vitória do que podemos chamar de civilização brasileira, e apontam na direção do País que ainda sonhamos vir a ser. Contudo, em pleno governo de mudanças, de inspiração progressista, tecnocratas da Fazenda – desapartados da realidade do País onde vivem – discutem quebrar esses pisos constitucionais, em prol de um sacrossanto “arcabouço fiscal” imposto pelo andar de cima.

Como não bastasse, nosso governo ventila a possibilidade de ceder (mais uma vez) a pressões da caserna e criar um piso de gastos para os engalanados oficiais. Mais que nunca, é preciso salvar o governo Lula de suas piores ilusões, lembrar-lhe sua razão de ser e evitar que, no pleito de 2026, a centro-esquerda estenda o tapete para o retorno da extrema-direita ao poder.

Mistério na Corte – A deletéria tese do “Marco Temporal”, que institucionaliza esbulhos e violências de todo tipo praticadas contra os povos indígenas do Brasil, inclusive na história recente, e é defendida com unhas e dentes pelo agronegócio mais boçal, teve sua patente inconstitucionalidade devidamente reconhecida pelo STF em setembro passado.

Mas eis que, na última segunda-feira (em pleno Abril Indígena!), o senhor Gilmar Sempre Ele Mendes provoca uma reviravolta no tema, ao suspender as ações em trâmite na Justiça que tratam do referido “marco”, e determinar um processo de “conciliação” sobre o tema. Fica no ar a questão: que razões animam o empresário e político mato-grossense, que também atua como juiz?

O passado reclama: – O Estadão de 1º de maio reclama contra o aumento do emprego. Mais gente ganhando mais e gastando mais risco de inflação. Donde se conclui…


Fonte: Carta Capital* Com a colaboração de Pedro Amaral